“Que horas ela volta?” – Filme para ver com os pais

Que horas ela volta?” é o filme brasileiro (Anna Muylaert, 2015) que está dando o que falar por retratar o local onde as desigualdades brasileiras ficam mais explícias: na casa, geralmente grande, onde convivem patrões e empregados.

Mas eu não vou falar do filme em si. Ao invés, quero dar uma dica à um público especial. Os parecidos comigo, que viveram em maior ou menor grau as experiências da filha da empregada.

Veja o filme. Se você se identificar com a Jéssica (Camila Márdila), dá um jeito de ver o filme com seus pais também. É na relação entre ela e a mãe Val (Regina Casé) que para gente como nós – universitários negras(os), pardas(os) ou mesmo brancas(os) filhas(os) de pais trabalhadores de renda média ou baixa – que está o coração do filme.

O filme gera uma chance ótima de conversar sobre o incômodo que eu e suponho que outros como eu tenham vivido ao ter uma vida de experiências, vivências e possibilidades graças ao sacrifício dos nossos pais (ou tios, avós…) que tiveram bem menos que nós.

Não é a toa que tem tanta crítica e debate rolando sobre ele por aí. O filme toca feridas.

Tem quem ache que o filme simplifica o combate desigualdade à meritocracia. Tem quem o veja como um tapa na cara da classe média. Outros o veem tanto como uma peça de propaganda petista ou como um símbolo dos avanços sociais desde 2002. Também tem quem o veja como um filme inofensivo ao invés de engajado como promete e que não relaciona a hierarquia social e desigualdades ao racismo.

Ou seja, o que mais tem pela Internet é crítica às quais qualquer um pode se identificar.

Isso é bom. Assim, por ângulos diferentes, falamos sobre o maior problema brasileiro de hoje e sempre: o quanto a servidão, descendente direta da escravidão, demonstra as relações desiguais de poder econômico, político, cultural e social no Brasil.

Mas deixo essa crítica social importantíssima um pouco de lado pra falar da relação entre a filha Jéssica e a mãe Val.

Jéssica chega à São Paulo para fazer vestibular e se depara com a vida servil da mãe empregada doméstica numa mansão paulistana. Desde o ônibus do aeroporto para a casa, Jéssica já demonstra incômodo ao descobrir que a mãe mora onde trabalha. Na casa, logo se recusa a dormir no quartinho da empregada e ousa cair na piscina.

Essa “rebeldia” da filha gera a indignação da mãe por Jéssica não respeitar a ordem do “cada um no seu quadrado”. Jéssica não entende (não respeita?) a subserviência da mãe. Os conflitos só terminam quando se revela que ambas percebem o quanto servem de exemplo de vida uma para a outra.

Essa relação de afeto e conflito ilustra um lado que pouco se fala diante do tão badalado impulso ao acesso à universidade entre grupos sociais menos privilegiados.

Não quero entrar aqui no mérito ou demérito de programas como as cotas universitárias e o Prouni. Mas estes programas – combinados com o sacrifício de tantos pais de baixa renda – estão criando gerações de estudantes universitários cujos pais sequer terminaram o ensino fundamental.

Logo, estão surgindo gerações de jovens que não trabalham nem trabalharão em funções de longas e exaustivas horas de trabalho corporal e/ou serviçal como seus pais.

Esse conflito não é só de gerações.

É também um conflito de valores profissionais, de conhecimento teórico e prático, de novas formas de se relacionar com o mundo. Sim, mundo no singular. Porque apesar das diferenças entre as possibilidades de futuro entre pais e filhos, não dá pra dizer que os mais novos e estudados vão viver uma realidade diferente dos mais velhos.

Abrem-se oportunidades, mas continuam as desigualdades. Assim, o novo conhecimento dos filhos não se opõe, mas fortalece e se fortalece do conhecimento dos mais velhos.

Por isso que eu disse no começo: se você, assim como eu, é negra(o), parda(o) ou mesmo branca(o) filha(o) de pais trabalhadores de renda média ou baixa, assista ao filme com seus pais (ou com quem quer que seja que tenha te criado). Porque ele é instrumental para nos ajudar a lidar com os conflitos que invariavelmente surgem no choque entre nossa maneira de (vi)ver o mundo e a dos nossos pais.

Por exemplo, eu venho de uma família de classe média baixa (antes de rebatizarem como a ideia mentirosa de “nova classe média“). Minha mãe foi professora do Estado do Rio. Meu pai trabalhava na companhia férrea e fazia extras de pedreiro. Mãe fez o segundo grau. Pai parou na quarta série.

Da infância, não lembro de viajarmos, exceto nas excursões farofeiras à praia com parentes e vizinhos de Magé, na Baixada Fluminense. Não tinhamos carro (compartilhávamos a Brasília verde do meu avô). Pela única TV, eu lembro da inveja que sentia do melão, do queijo e do presunto no café da manhã da Xuxa.

Mas não podia reclamar. Sempre estudei em escola particular (não absurdamente caras como hoje) e, aos dez anos, comecei no cursinho de inglês, muito caro para o padrão de vida da cidade. Por essas possibilidades, nas broncas eu sempre ouvia algo como “a gente nunca teve metade do que você tem. Estamos nos sacrificando para seu futuro.” Ao ouvir, não podia reclamar.

Mas reclamava. Reclamava de não ter o video-game super-poderoso do coleguinha branquinho da escola. Reclamava de não ter mobilete como a coleguinha do colégio. Reclamava de calçar kichute ao invés de All Star. Nessas choradeiras de barriga cheia, talvez eu os tenha magoado muito. Foram vários conflitos como um que Val e a Jéssica têm no quarto da empregada.

Tinham outras experiências parecidas com o filme também. Algumas vezes, meu pai me levava numas obras onde ele trabalhava. Em uma delas, como mestre de obras ele construiu a casa de um engenheiro rico, branco, com diploma universitário (o primeiro adulto que conheci a ter um) e uma gentileza paternalística e exploradora parecida com a da família onde Val trabalha. Eu, a Jéssica, recebia afagos na cabeça por ser o “filho promissor” do pedreiro.

Numa dessas idas e vindas, numa festa na casa do patrão, eu e meus amigos de pele escura caimos na piscina. O filho do patrão se recusou a entrar. Pareciam que haviam ratos na água, como diz a patroa da Val. Apesar de começar a ter uma perspectiva de vida já diferente dos meus pais, o abismo e o preconceito entre o filho do patrão e eu continuavam bem demarcados. Eu não tinha mais de 14 anos e já sentia que algumas coisas e alguns ambientes não eram para mim.

Essas situações me deixavam claro que eu nunca seria como os que tinham mais. Talvez eu tivesse o acesso, mas ser igual provavelmente nunca acontecesse. Isso me entristecia, apesar de saber que eu materialmente tinha mais do que muitos moleques de pele escura como a minha que viviam na mesma rua. Talvez meus pais percebessem essa tristeza e se magoassem, como a Val. Mas nunca me deixaram faltar mais do que o básico para eu seguir em frente em ter mais do que eles tiveram.

Segui e cheguei na universidade. Particular, com bolsa pelo convênio com o Governo do Estado e ajuda dos pais. Sem eles, meu salário dando aulas de inglês não daria para as mensalidades absurdas e viagens diárias de ônibus. Só na universidade – graças a professoras(es) mais críticas(os), como a Jéssica teve na escola – que eu aprendi a desconfiar e questionar as simpatias paternalísticas de meus chefes e das pessoas no meu círculo de amigos que reproduziam a hierarquia social nos nossos relacionamentos.

Nesse processo, passei a questionar a relação do meu pai com seu patrão também. “Como se dizer amigo de alguém que explora sua força de trabalho?” “Alguém que não respeita suas escolhas políticas e que age como se fosse superior simplesmente pelo diploma que possui?” Era nessas conversas acaloradas entre nós que eu pensava enquanto via Jéssica e Val em conflito por situações essencialmente semelhantes.

No princípio, eu achava que era um choque de mundos. O do meu pai, atrasado. O meu, o ideal. Contemporâneo.

Até que em algum momento ele parou de ouvir calado às acusações do filho cheio de razão. Ele percebeu e aceitou minhas denúncias do desequilíbrio de poder e a hierarquia na relação dele com o ex-patrão. Mas defendeu seu afeto pelo engenheiro. Além disso, se rebelava contra minha visão do mundo a partir dos livros e uma evidente arrogância com sua experiência de tantos anos de prática e vivência. “Não é bem assim”, ele dizia antes de me dar uma lição de como certas coisas da vida não condiziam com as teorias que eu devorava abitoladamente na universidade.

Desde então, ficou claro pra mim que eu e meus pais nos completamos. O filme ajudou ainda mais a perceber isso. O ponto de vista para (vi)ver o mundo deles é diferente do meu, mas a estrutura desigual e racista da sociedade brasileira permanece.

E é nesse contexto que os embates entre as Jéssicas e as Vals felizmente se multiplicam no país. Para mim, o filme é importante exatamente por isso. Porque mostra que os filhos mais educados não ultrapassam os pais, mas aprendem mais e somam forças e experiências para lidar com as desigualdades e injustiças de cada dia.

Por isso eu repito o que eu disse no começo. Se você identificou parte da sua história nesse fragmento da minha, veja “Que Horas Ela Volta?” com seus pais ou com quem quer que seja que te represente a figura materna e/ou paterna.

O filme é maravilhoso principalmente porque lida com um aspecto da vida que só quem cresceu numa relação como a de Jéssica e Val conseguirá identificar e sentir. Para nós, o filme pode ser revolucionário: tanto nas nossas relações familiares (com seus choques de gerações e visões de mundo) quanto na nossa postura na sociedade desigual brasileira a partir delas.

Me chamo Leonardo Custódio e sou doutorando em ciências sociais e comunicação na Universidade de Tampere, Finlândia. Quer trocar ideia? Me escreva em leonardo.custodio@staff.uta.fi .