Desde 2009, tenho me dedicado a compreender o que é e como acontece o midiativismo em favelas. A partir de agora, no pós-doutorado (2017-2019), pretendo me dedicar também à questão do midiativismo entre pessoas que lutam contra o racismo no Brasil e na Finlândia. Este texto foi uma reflexão originalmente publicada no site da rede anti-racista Raster (Finlândia) sobre minha experiência angustiante como único negro num evento anti-racista na Suécia. Depois que escrevi o texto, descobri a fala da admirável filósofa Djamila Ribeiro (Tedx São Paulo) sobre a necessidade de romper com silêncios em lutas anti-racistas. Meu texto, então, é um complemento à esse debate.
Na primeira semana de junho, eu participei do encontro “Racismo e Anti-racismo nas Sociedades Nórdicas”*, na Universidade de Södertörn, na Suécia. Foi a primeira vez que participei de um evento acadêmico anti-racista. Como um negro novato nessa área, as discussões foram ricas e iluminadoras. Porém, eu também senti como a branquitude** no ambiente acadêmico pode ser silenciadora. A partir da minha experiência no encontro, eu reflito sobre a força silenciadora da branquitude na academia e como ela pode afetar a participação de intelectuais negros em grupos, ambientes e debates predominantemente brancos.
Desde que eu me mudei para a Finlândia em 2007, eu me acostumei a ser o único ou um dos poucos negros em certos espaços públicos. Isso acontece em eventos acadêmicos e também em bares, festivais, museus e outros lugares. Quando acontece, eu apelo para sussurros ou mensagens sarcásticas para minha esposa: “advinha quem é o único negro de novo?”
Durante o encontro em Södertörn eu enviei a mensagem novamente. Desta vez, eu não fui sarcástico. Eu estava genuinamente surpreso. Como assim eu era a única pessoa negra numa sala para discutir racismo e ações anti-racistas? Eu não estou questionando a capacidade de pessoas brancas discutirem racismo. No entanto, eu estava esperando um pouco mais de diversidade no encontro.
Para ser claro e justo, além de mim, um dos palestrantes – Dr. Karim Murji – não era branco. Além dele, outra palestrante – a professora iraniana Halleh Ghorashi – e outros participantes racializados não-europeus e do Leste Europeu também são considerados “pessoas de cor” no contexto ocidental Europeu apesar da pele branca ou clara***. Mesmo assim, apesar da presença destas pessoas, eu me senti muito sozinho na minha negritude.
Eu tenho pouca experiência em pesquisa anti-racista. Até agora, foquei meus interesses nas lutas dos trabalhadores pobres contra consequências da desigualdade social (Custódio, 2017). No entanto, depois de defender meu doutorado em 2016, eu passei a ter interesse também pelo midiativismo anti-racismo. Assim, participar do encontro foi uma ótima oportunidade para começar a familiarizar com debates anti-racistas. Eu estava principalmente interessado em saber como pesquisadores racializados participam destes debates. Por isso eu fiquei tão de cara com a predominância branca entre os participantes. Sozinho como negro, decidi ficar quieto e observar.
No primeiro dia, eu não ouvi nada sobre branquitude no sistema acadêmico.
Primeira palestrante, a Professora Halleh Ghorashi falou sobre os desafios para ações coletivas e solidariedade em temos de individualismo crescente. Ela também falou sobre nossa própria complicidade ao caráter excludente das estruturas acadêmicas. Aquele momento foi oportuno para discutir a cumplicidade acadêmica e a predominância branca no sistema universitário, mas nenhum de nós levantou a questão.
Segundo palestrante, o Professor sueco Mattias Gardell descreveu como atos e movimentos ultranacionalistas, facistas e racistas se desenvolvem nos países nórdicos. Ele também argumentou que a esquerda precisa parar de temer a si mesma e ser mais audaciosa em suas ações contra o racismo. Pensando agora, acredito que poderíamos ter discutido sobre como mais vozes racializadas nesses debates poderia contribuir para o aumento da audácia da esquerda. Mas, de novo, nenhum de nós levantou a questão.
Discussões sobre branquitude no sistema acadêmico só surgiram no segundo dia.
Primeiro durante a palestra do Dr. Karim Murji. Foi ali que eu mais senti o peso de ser o elefante negro na sala-de-estar anti-racista (minha versão racializada do dito popular que se refere à situações desconfortáveis e problemas com os quais um grupo de pessoas evita lidar).
A fala do Dr. Murji foi sobre pesquisa ativista e como acadêmicos engajados em crítica racial devem também agir em debates públicos e ações políticas. Enquanto ele falava, eu sentia uma combinação de euforia, ansiedade e medo.
Eu estava meio eufórico porque daquele momento em diante seria impossível não falar sobre o fato de haver só um negro participando do encontro. Eu estava ansioso para levantar a questão assim que a fala terminasse. Mas problematicamente eu também estava com medo.
Quanto a fala terminou, minhas mãos começaram a tremer. Eu queria perguntar. Eu queria saber: quantos de vocês aqui nessa sala se sentem incomodados ou desconfortáveis com o fato de estar discutindo racismo e só haver um grupo minúsculo de participantes não-brancos no encontro? Mas eu não perguntei nada.
Enquanto minhas mãos tremiam e minha boca se recusava a deixar meus pensamentos saírem, eu percebi o quanto a branquitude é uma poderosa força silenciadora.
Eu ficaria quieto se eu fosse branco? Talvez. Faria alguma diferença para mim e minha carreira se eu fosse branco e calasse a boca? Possivelmente não. Eu sei porque nas complexidades do cotidiano eu também vivencio momentos de privilégio como homem com educação superior e financeiramente confortável. Por exemplo, me levou um longo processo de reflexividade forçada, como a Professora Ghorashi colocou, para entender meus privilégios e mesmo atitudes racistas contra mulheres negras no contexto brasileiro.
Eu perceberia o elefante negro no encontro anti-racista se eu fosse branco? Talvez se eu tivesse passado por um processo similar de reflexividade forçada. Eu levantaria a questão e arriscaria colocar a mim mesmo e meus privilégios como parte do problema? Talvez … não.
Se eu fosse branco, ficar em silêncio seria uma decisão sem grandes consequências além de um potencial disconforto. Porém, no caso de uma única pessoa negra numa sala predominantemente branca os riscos são significantemente maiores do que um sentimento de desconforto.
Enquanto eu tremia em silêncio, eu pensava: e se eles pensarem que eu estou acusando eles de racismo? E se eles me virem como um negro choramingão, nervoso ou mal-agradecido que não entende o quanto todos ali são aliados apesar de brancos? O que seria de minha carreira se todos esses acadêmicos brancos respeitáveis e poderosos no campo de pesquisa anti-racista se sentissem desconfortáveis por minha causa? Eles me contratariam, apoiariam minhas inscrições para vaga e me convidariam para dar aula em seus cursos?
Talvez nada disso teria acontecido. Mas talvez elas teriam acontecido. Vai saber. E é essa dúvida e suas razões que são o xis da questão. Meu silêncio não foi uma decisão, mas uma consequência do meu medo dos possíveis impactos à minha vida profissional e logo ao meu bem-estar.
Além de me fazer sentir medo, a ideia de confrontar a branquitude num ambiente predominantemente branco também me fez questionar a validade sociopolítica e institucional da minha angústia e meus pensamentos. Dúvidas cheias de sentimentos de culpa latejavam na minha cabeça. É minha culpa? Tudo isso é coisa da minha cabeça? Estou vendo coisas onde não tem nada?
Quando uma pessoa cresce lidando com formas sutis e cheias de nuances do racismo no cotidiano como eu vivi no Brasil das décadas de 1980 e 1990. Se questionar com sentimento de culpa é uma primeira reação típica. Felizmente os tempos mudaram. O conhecimento e a atitude de falar se espalharam entre pessoas racializadas em vidas institucionais e cotidianas pelo mundo. Ainda assim, conferir os próprios pensamentos e sentimentos antes de falar parece uma ação instintiva quando o bem-estar e o futuro de quem fala está em risco.
Outra questão que me causou insegurança ao pensar em levantar a questão de ser o único negro no encontro foram algumas reações durante as perguntas e respostas. Os primeiros dois comentários à fala do Dr. Murji foram justificações para porque é tão difícil para professores tomarem uma atitude mais política em seus projetos de pesquisa. Para eles, ter uma atitude mais abertamente política representa o risco de perder financiamento e ser marcado como acadêmicos que causam problemas.
Enquanto eu os ouvia, eu pensava. Se eles – professores brancos que ocupam posições institucionais de poder – temiam por suas carreiras e financiamento de pesquisas por falarem mais abertamente sobre anti-racismo, imagina como um pesquisador negro em começo de carreira – cuja renda em geral depende de convites e aceitações de propostas por acadêmicos brancos – se sente ao desafiar aqueles que em algum momento podem decidir se ele vai ter um trabalho ou não? Talvez havia alguma razão nas dúvidas cheias de sentimento de culpa no final das contas.
Apesar do medo, eu timidamente levantei a mão. Mas já era tarde. O tempo acabou. Passamos para a apresentação da Dra. Suvi Keskinen, a segunda a falar da branquitude e da hegemonia branca sob perspectivas teoréticas e empíricas. A fala incluiu exemplos bem informativos de resistência anti-racista entre minorias racializadas nos países nórdicos. No entanto, eu não consegui me concentrar na sua fala. Ao invés disso, eu continuei observando se alguém na sala relacionaria o tema da hegemonia branca à predominância de brancos no encontro.
De novo, nenhum de nós fez essa conexão. Ao mesmo tempo, eu continuava pensando sobre minha própria trajetória como pesquisador.
Por que eu nunca havia sentido a força silenciadora da branquitude antes do encontro na Universidade de Södertörn? Pode ser porque até agora eu nunca havia levantado questões sobre branquitude em meu trabalho. Eu nunca havia me posicionado politicamente como pesquisador negro na Finlândia. Eu fico imaginando como as coisas vão ser agora que desafiar a branquitude vai ser parte essencial da nova fase da minha carreira acadêmica. Nesse caso, a participação no encontro me deu uma ideia dos desafios que virão. Compreender como a força silenciadora da branquitude opera é um primeiro passo importantíssimo para não se deixar silenciar por ela.
* Leia mais (em inglês) sobre o encontro em Södertörn aqui: https://www.utu.fi/en/units/soc/units/sociology/research/mchssnr/workshop3/Pages/home.aspx (Último acesso em 14 de junho de 2017).
** Uma definição em inglês sobre branquitude que me foi útil está aqui: https://raster.fi/2017/05/11/whiteness-as-a-privilege-and-a-struggle (último acesso em 23 de junho de 2017). O site geledés também possui muitos textos informativos, como esse: https://www.geledes.org.br/definicoes-sobre-branquitude/ (último acesso em 2 de julho de 2017).
*** Por racialização, eu me refiro tanto ao “processo sob o qual significados raciais são anexados à questões particulares – em geral tratadas como problemas sociais – de forma que raça pareça ser um, ou normalmente o, fator principal das formas em que elas são definidas e compreendidas” quanto à “dinâmica mutável sob a qual atividades e formas culturais mais novas sejam compreendidas e explicadas em termos raciais diferenciantes, ou racializadas” (Murji & Solomon, 2005, 3).
Referências
Custódio, L. (2017). Favela Media Activism: Counterpublics for Human Rights in Brazil. Lanham: Lexington Books.
Murji, K., & Solomos, J. (2005). Racialization: Studies in Theory and Practice. Oxford: Oxford University Press.