Na Nossa Pele

Querido Lazinho,

Eu sou o Léo. Desculpe a intimidade. Mas acabei de ler seu livro e não tem como não ser íntimo. Até porque no livro você fala comigo. Me faz várias perguntas. Quis tanto saber de mim. Então resolvi te escrever. Acho importante te dizer o quanto seu livro é importante para mim e tantos outros de nós – meninos e homens negros – no país.

Há quatro dias atrás, seu livro chegou no correio. Ou posti, como dizem aqui na Finlândia. Meu grande amigo Dudu, um dos irmãos brancos que a vida me deu, comprou duas cópias. Uma pra si e outra pra mim. Disse que queria ler junto comigo. Ele em Magé, eu em Helsinki. “Quero aprender”, ele sempre diz. “Aprenderemos juntos”, respondi. Mas Dudu foi safado: quando minha cópia chegou, ele já tinha lido a dele. Para tirar o prejuízo, tirei o sábado para começar a ler. Antes da noite chegar, sem perceber, terminei.

Acho que li tão rápido porque de fato parecíamos conversar. Tantas coisas em comum. Você contava sobre sua infância na Ilha, sobre sua mãe e sua tia, sobre sua grande família, sobre o amor silencioso com seu pai, sobre as amizades-irmãs que construíra, sobre as decisões enormes que tão novo teve que fazer na vida… você contava e eu ouvia. Ouvia e reconhecia na sua história a minha. Sentia nostalgia. Saudade.

Memórias compartilhadas também por termos tido privilégios parecidos. Privilégios herdados de tanto sacrifício para que, como dizia a avó da Glória Maria, fôssemos livres como muitos antes de nós – e mesmo ao nosso redor até hoje – não foram. Como você, também me preocupei quando celebraram minhas conquistas acadêmicas como vitória pessoal. Também sou exceção. Alguém que dependeu de pessoas que abriram mão de seus próprios sonhos. Também tive sortes. Vários fatores além de dedicação. Então sempre me incomodou ser usado como exemplo para desmerecer outras trajetórias negras.

Mas apesar de sentir seu livro como uma conversa entre negros, admiro o tom paciente e esclarecedor que você teve com seus leitores brancos. Mesmo no seu momento bêbado sem filtro, quando questionou amigos brancos sobre a branquitude, você foi gentil. Pedagógico.

Imaginei como Dudu se sentiu lendo o livro. Na adolescência, ouvíamos samba de raiz, funk carioca e Racionais na esquina. As letras politizadas – como o Ilê Ayê no seu caso – davam vocabulário para os amigos negros expressarem suas angústias. Eu, privilegiado, falava do preconceito que vivia em ambientes brancos. Outros falavam da exploração que sofriam por ter pouco estudo e, logo, trabalhos ingratos. Alguns brancos ouviam incomodados. Outros desdenhavam. Mas Dudu e alguns outros ouviam calados. Perguntavam. Respeitavam.

Talvez ele tenha se lembrado dessas conversas. Se emocionado. Não sei. Como também não sei como tantos brancos e negros que minimizam o racismo se sentirão. Não interessa. O que importa é que seu recado, pelo qual me sinto representado, foi dado, a meu ver, com perfeição.

Mas além das semelhanças nas nossas trajetórias, o que mais me deixou feliz foi ver você, um homem negro hétero cis famoso e bem-sucedido, falando de forma tão nua e emocional sobre racismo e seu processo de politização. Como você mostra em seu livro com tantos exemplos, as mulheres negras e as vozes negras na comunidade LGBTQ são as mais influentes no Brasil de hoje na questão racial. Isso é ótimo.

Mas são homens hétero cis que causam tanta violência física e verbal. Assim, acho muito importante que homens negros jovens como você, Túlio Custódio, Douglas Belchior entre outros – eu mesmo, por que não? – se posicionem também. O Brasil é machista. Admitindo esse problema, quanto mais exemplos de homens negros que ouvem, respeitam, dialogam e lutam junto com mulheres e a comunidade LGBTQ, maiores são as possibilidades de criarmos homens melhores dos meninos que nos acompanham.

Estou dizendo isso porque pensei muito no meu eu-adolescente, no meu sobrinho e meus afilhados enquanto te ouvia no livro. Quando li meu primeiro livro voluntariamente, eu tinha mais de quinze anos. Até então, dizia que não gostava de ler (como dizem meu sobrinho e os afilhados). Aquele primeiro livro foi fascinante porque era fácil de ler e respondia muitas questões que me incomodavam na época. Era auto-ajuda. Desde então não parei de ler.

Ao terminar seu livro, fiquei pensando: e se eu tivesse tido acesso à um livro como esse naquela época? Um livro de linguagem de bate-papo que falasse comigo? Um autor que parecesse um tio ou primo bem-sucedido, negro como eu, um pouco mais velho, que conversasse e aconselhasse com carinho, mas sem esconder suas incertezas, suas ignorâncias e, principalmente, seus sentimentos? Imagino que eu teria reproduzido muito menos o racismo nas minhas próprias ações ao crescer. Imagino que teria transformado minha angústia em consciência e politização muito mais cedo.

Imagino como meu sobrinho e meus afilhados se sentirão quando se encontrarem com você como me encontrei agora. Fico feliz que você, como ídolo de tantos de nós, os tenha dado essa possibilidade.

Para terminar, gostaria de dizer que fico muito feliz pelo sucesso do seu livro. Espero que, assim como eu, outros leitores continuem te escrevendo, dialogando (como no caso da carta da Yasmin Thayná e sua resposta). Que outras pessoas agradecidas, como a linda Dona Diva, continuem emocionando a você e a todos nós. Afinal, a sua pele é a nossa, como mostram as milhares de fotos completando seu rosto na capa do livro (olha a minha aí abaixo). A nossa pele que nos une em sua cor, suas histórias e ancestralidade, suas músicas e danças, sua resiliência e sua força para lutar e resistir.

Valeu mesmo, Lazinho. De coração.

Beijos para Taís e as crianças.

Abraços,

Léo Custódio (@_LeoCustodio_ , @microcontosnegros )

PS.: Tem como você mandar um beijo para o Dudu? Sem ele não teríamos trocado essa ideia. Ele vai ficar muito feliz e animado na sua trajetória para se tornar um homem branco cada vez melhor e mais engajado em iniciativas contra o racismo do que já é.