Me inscrevi logo que soube que Dilma Rousseff falaria em Helsinki*. Dilma, a primeira mulher presidente do Brasil. Tão perto. Tão fácil de ver. Para mim, imperdível. Decidi ir. Dali em diante, sensações contraditórias dominaram meu corpo.
De cara senti entusiasmo. Fiquei animado porque – admito – admiro a história de vida política da Dilma. Uma mulher que sobreviveu à violência machista tanto na militância quanto na política partidária. Respeito muito sua trajetória. Não teria ido se fosse um político pelo qual não tenho um mínimo de respeito, por exemplo.
Mas ao mesmo tempo, senti uma mistura de satisfação, tristeza, decepção e raiva que já são clichê ao falar das contradições do PT. O partido que mais fez política pelo povo trabalhador pobre na história do país, mas que se sujou de lama e sangue fazendo essa mesma política.
Com a entrada no evento garantida e todas essas sensações contraditórias à flor da pele, eu pensava: Como me preparar? O que fazer? Como agir se puder falar com ela?
O que você faria?
Decidi ouvir e observar. Tanto a Dilma quanto a platéia. Na universidade, salão lotado de finlandeses curiosos e brasileiros polarizados.
Enquanto Dilma falava, minhas sensações contraditórias pulsavam. Ela explicou porque chama o que sofreu de golpe. Falou dos erros do PT e defendeu reformas políticas. Além disso, se demonstrou preocupada com o avanço da extrema direita no país.
Enfim, temas típicos em suas falas depois do impeachment.
A diferença para mim foi perceber, ao vivo, que ela é mais articulada e inteligente do que críticos e zoadores a consideram. Ela comete alguns erros gramaticais e se perde aqui e ali nas ideias. Mas quem nunca? Isso, inclusive, é muito normal entre políticos brasileiros.
Mais uma vez, pensei: Será que insultariam e zombariam tanto se ela fosse homem? Talvez sim, já que o Lula sempre ouviu críticas e zoações parecidas. Será que gritariam isso se ela fosse de direita? Curiosidades insaciáveis que latejavam na minha cabeça.
Quando ela terminou, juntei minhas sensações contraditórias e decidi perguntar. Tremia. Era a pergunta da vida. Expliquei de onde vim. Falei da minha família de classe trabalhadora historicamente eleitora petista. Levantei a desconfiança generalizada e crescente do PT nas periferias.
Com essa introdução – talvez muito longa – fiz a pergunta:
Como lidar com o fato de, localmente, trabalhadores pobres estarem sendo muito influenciados por igrejas – a fé pentecostal indo pra direita – e a coisa do medo – que leva pra direita? Como a esquerda vai fazer pra se reconstruir com essas pessoas nesse cenário que se construiu nesse processo?
Quando perguntei as pessoas aplaudiram. Foi um alívio. Minhas sensações contraditórias faziam sentido. As palmas tinham dito. Uma pena que, no evento aberto, ela deu uma volta enorme e não respondeu (A resposta viria só mais tarde, no evento fechado. Ali, ela falou animada sobre como a caravana do Lula e a formação da Frente Brasil Popular são, para ela, símbolos da resistência necessária para mobilizar o povo. Pessoalmente, acho bem mais difícil do que ela aparenta acreditar).
No evento aberto, a fala da Dilma teve o efeito já esperado. Por um lado, quem já gostava dela, adorou. Vários olhos brilhavam.
Por outro lado, quem já a odiava, odiou. Rostos trincados. Não só ódio à Dilma e ao PT, mas – como as redes sociais me contaram depois – uma raiva misturada com perplexidade ao ver gente que elas(es) consideravam agir como massa de manobra ignorante ao fazer fila para tirar selfies e cumprimentá-la.
Da fila eu olhava o que a Dilma fazia. Achei impressionante a forma como ela interagia de forma respeitosa, simpática, paciente e tranquila.
Não era aquela simpatia protocolar ou demagoga. Parecia real. Por mais difícil dizer o que é real nesse caso, era o que eu sentia. Sabe uma pessoa que tu bate o olho e mais tarde diz para os amigos “parece muito gente boa”? Foi essa a impressão que tive.
“Eu quero tirar uma foto com ele”, Dilma disse para minha amiga apontando para mim. Sorri tímido. Lisonjeado.
Um pouco depois, no evento fechado com políticos locais, pesquisadores, professores e estudantes, Dilma continuou simpática, atenciosa e interessada. Conversava sem pressa apesar do horário apertado. Ouvia com atenção e cuidado. Foi dura ao responder críticas, mas também bem-humorada. Quase sempre ria. Brincava.
Quando o cansaço fez seu inglês travar, perguntaram se alguém podia interpretar. Voluntário, sentei ao seu lado. Foi mágico.
Ali eu não pensava mais no PT. Egoísta? Talvez. Mas quando me imaginaria sentado ao lado de uma Presidente da República? Nunca. Esqueci todos os meus dilemas. Só pensava nos meus pais, irmã e família me vendo naquele lugar privilegiado.
Quase no fim, conversamos.
Falamos da pergunta que eu tinha feito no auditório. Como adolescente inseguro, eu queria garantir que ela não tinha entendido errado. Queria esclarecer que não quis atacá-la. Que, ao contrário, foi uma chance única tirar essas dúvidas que tanto me incomodam.
Nesse momento, com suas mãos suaves ela segurou as minhas carinhosamente. Como uma tia ou avó favorita faria. Ombro no ombro, me olhou nos olhos e, com um sorriso no rosto, me disse baixinho: nunca deixe de fazer perguntas difíceis. Sempre questione independente de quem seja. Falou do quanto lutaram para que todos pudessem fazer qualquer pergunta.
Mudo e sem ação, eu sorria. Nunca imaginei conversar com uma Presidente, quanto mais ser aconselhado por ela ao pé do ouvido.
Agora, alguns dias depois, as sensações contraditórias de alegria, tristeza, decepção e as vezes raiva diante das contradições políticas do PT e seus governos continuam em mim.
Mas fico pensando: a maior parte das críticas específicas à Dilma são, de fato, insultos: mandona, fraca, vaca, anta, burra, puta… Estar no evento me fez refletir: o quanto do impeachment e seu apoio popular tiveram força nesse ranço machista? Pense: quantos políticos homens comprovadamente corruptos e criminosos continuam em câmaras e palácios por aí? E mesmo os presos: quantos deles ainda são tratados como “Vossa excelência”?
Por fim, o evento não fez diferença em termos de saber dos bastidores da política nacional que trouxeram o Brasil ao caos. Sobre a fala em si, o amor ou ódio vai definir as versões que você ouvir dependendo do brasileiro que contar como foi. Mas para mim, mesmo sem me livrar das minhas próprias contradições, conversar com a Dilma fez desse dia um dos mais marcantes da minha vida.
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* O Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) disponibilizou a fala completa, incluindo as perguntas e respostas, no Facebook. Ver aqui.